Nada Sei #1 - Sobre o caos, uma caneta e essa mania de procurar respostas mirabolantes
Uma reflexão sobre acidentes, sobreviventes, fé e a necessidade que temos de criar sentido onde, muitas vezes, só existe o resultado natural da vida (e do caos).
Recentemente, me deparei com uma notícia sobre o acidente aéreo que aconteceu na Índia. Um avião da Air India, com mais de 200 pessoas a bordo, caiu logo após a decolagem. Centenas de pessoas morreram. Um cenário de destruição, fumaça, gritos, sirenes… e, no meio de tudo isso, um homem saiu andando. Com escoriações leves, sozinho, no meio dos destroços.
E então veio o post:
"Se isso não é propósito de Deus na vida desse homem, eu não sei o que é."
Fiquei parado olhando aquela frase. Não era a primeira vez que eu via alguém transformar o acaso em prova de favoritismo divino. Essa mania de puxar explicações milagrosas pra justificar o injustificável. De criar sentido onde só existe a física, a gravidade, o metal retorcido e o azar coletivo. Como se Deus fosse um gerente de RH celestial, selecionando nomes pra sobreviver ou morrer naquele dia.
Isso me lembrou uma passagem do livro Carta Entre Amigos, do padre Fábio de Melo com o Gabriel Chalita. O Chalita conta de um acidente de carro com o irmão, que tinha deficiência intelectual. O carro deles bateu de frente com um caminhão. O irmão morreu na hora. Ele saiu ileso. Na carta, ele perguntou ao padre:
— Por que ele e não eu?
E a resposta veio sem floreios:
— Porque um homem bebeu todas e foi dirigir um caminhão.
Simples assim.
Mas a gente não gosta de respostas simples. A gente gosta das mirabolantes. Gosta de imaginar que existe um roteiro invisível, com lições embutidas, missões secretas e moral da história ao final de cada tragédia.
Eu acredito no caos. Não no caos como bagunça ou desordem, mas como o resultado natural de bilhões de variáveis coexistindo dentro de um sistema com regras claras: a gravidade, a física, a biologia, a química, os descuidos humanos, as falhas técnicas, as doenças inesperadas. Tudo junto, ao mesmo tempo, gerando o improvável, o inesperado e, às vezes, o inevitável.
Uma vez, uma pessoa que sabia que eu fui criado na igreja me perguntou no que eu acreditava sobre a vida. Eu tava com uma caneta na mão. Peguei a caneta, segurei na altura dos olhos e soltei. Ela caiu no chão. Simples assim. Não porque tinha um significado profundo nisso. Não porque o universo tava querendo me dar um sinal. Ela caiu porque existe uma força que faz as coisas caírem. A gravidade. Uma dessas leis invisíveis que regem tudo o que existe: silenciosa, constante, impecável. Uma regra natural que não pede fé, não depende de crença, não exige interpretação espiritual pra funcionar. Ela simplesmente… é.
Mas, se a gente parar pra pensar… que coisa mais sobrenatural pode existir do que essa força invisível que segura planetas em órbita e, ao mesmo tempo, faz uma simples caneta cair no chão? Talvez só pareça comum porque esteve aqui desde sempre (e talvez isso seja o sentido de “eternidade”).
Aí veio a pergunta inevitável:
— Então tu não acredita em Deus?
Acredito. Mas não nesse Deus que fica monitorando pecados, julgando quem merece ou não viver, contando pontos pra ver quem ganha um milagre no final do dia. Não num Deus preocupado se eu tenho tatuagem, se eu passo batom, se eu escuto rock ou se eu amo um homem ou uma mulher.
Acredito num Deus que é a própria existência. Que é a natureza funcionando, as marés subindo e descendo, os elétrons girando, os planetas se movendo, a vida acontecendo.
Enquanto muita gente gasta tempo tentando entender Deus, eu prefiro viver a divindade que é simplesmente estar aqui. Respirando. Errando. Amando. Caindo. Levantando. E deixando a caneta cair quando for o caso.
© TIHH GONÇALVES